Eu devia ter pensado nisto quando eu era mais novo… Agora, já com 83 anos, é um pouco tarde. Sei que tive uma vida feliz e que todas as pessoas que passaram por ela foram especiais para mim de alguma forma, mas aquele pedacinho arrancado do meu coração realmente nunca mais foi recuperado. Até hoje eu não sei explicar o que tudo aquilo significou na minha vida, mas eu sempre soube que era algo muito especial, independente do que fosse.

Foi difícil, no início, aprender a viver sem tudo aquilo, mas eu acho que, na época, era a escolha certa para ela e eu não seria capaz de ir contra a sua vontade. Mesmo discordando, eu respeitei aquela decisão.

Não me lembro de muitas coisas que vivemos, pois desde os meus 75 eu sofro de amnésia e acabei esquecendo grandes parcelas do que vivi, mas por algum motivo, certas coisas nunca fugiram da minha cabeça. Depois que ela sumiu da minha vida, nunca mais falei com ninguém sobre tudo o que vivemos ou sequer sobre ela, porque preferi guardar estas lembranças só para mim. Pelo fato de não ter tocado mais neste assunto e revivido certos momentos, a maioria dos detalhes acabaram indo embora com a minha memória. Outros, os que me marcaram mais, vão permanecer comigo até o meu último suspiro.

Lembro-me nitidamente do momento em que ela me entregou o meu primeiro presente de aniversário… De onde estávamos parados e como ela ficou sem jeito ao me desejar “parabéns” e me abraçar, logo em seguida. Recordo-me também que ela continuou me comprando outros presentes, mesmo que eu não estivesse mais de aniversário. Ela não precisava de motivos para me comprar algo, ela simplesmente se sentia bem ao me presentear e gostava de fazer isso e, então, fazia. Não sei mais que presentes foram estes, mas sei que era o jeito dela de me fazer sorrir, coisa que ela facilmente conseguia.

Até hoje eu não me esqueci como ela foi uma das únicas pessoas que parava para me ouvir… Mesmo que o que eu tivesse para falar não fosse relevante para a situação ou que ela não concordasse comigo, mas ela sempre me dava a chance de falar o que eu pensava sobre o assunto. E mais do que isso, ela respeitava a minha opinião. Algumas vezes ela seguia meus conselhos e isso significava muito para mim, pois mostrava que o que eu achava ou sentia sobre algo tinha valor para ela também.

Ser irritante com ela era quase que um passatempo meu. Fazia tudo o que eu podia (e mais um pouco) para deixá-la braba, mas nem sempre funcionava. Todas aquelas vezes em que escrevi palavras erradas de próposito só para tirá-la do sério. Palavras que ela corrigia habitualmente, palavras que eu continuava escrevendo errado. Mas ela sabia que era tudo de mentirinha, apesar de que eu a odiava imensamente quando ela me corrigia enquanto eu estava conversando com ela… Mas ela também sabia que eu a odiava naqueles momentos só de mentirinha.

Lembro-me de ter tentado sentir mais do que eu sentia, mas talvez fosse uma espécie de sentimento diferente, não aquele sentimento eufórico e de paixão, mas um sentimento de segurança, de confiança e de poder ser eu mesmo e saber que ela gostava de mim indiferentemente de tudo isso, com meus defeitos e com todas as coisas que eu achava que não eram o meu melhor. Mas isso não importava para ela.

Lembro de uma vez que saímos para conversar e ela queria que eu falasse aquelas coisas que eu tinha vergonha de falar na frente dela. Foi muito difícil para mim expor o que eu sentia e, mais complicado ainda, dizer que eu gostaria de estar sentindo muito mais… Eu me lembro de suar frio, porque eu não sabia como explicar aquelas coisas para ela e mesmo ela tendo sido compreensiva, não arrancando aquelas informações de mim, eu não me senti a vontade para revelar aquela minha confusão de sentimentos… Compartilhei meia dúzia de palavras, mas mesmo assim eu precisei respirar fundo e tomar fôlego antes de qualquer coisa. Eu lamento até hoje por não ter conseguido falar tudo o que eu queria e fazer as coisas funcionarem de alguma forma.

O que eu sei é que agora eu vejo isso… Não posso reclamar da vida que levei, não posso dizer que as pessoas que passaram por ela não foram importantes, mas eu acho que um pouquinho de mim ficou para sempre lá e eu vivi o resto da minha vida sem ser completo. Não sei se era apenas uma amizade especial, mas ela foi uma das pessoas mais significantes para mim, e eu sinto que essa parte de mim sempre ficou faltando. Nunca mais falei com ela, nem sei se ainda está viva, mas ela continua vivendo dentro de mim. Dentro de cada lembrança, de cada abraço já trocado e de cada palavra de conforto que ela jogou em minha direção. Por ter sido uma das pessoas mais especiais que já passou pela minha vida, por ter sido compreensível sempre e por ter me aceitado do jeito que eu sou.

É só o que eu consigo pensar agora deitado nesta cama. Já me conformei por ter trocado palavras de despedida com as pessoas que são importantes pra mim, meus filhos, minha esposa, meus amigos e familiares, pessoas que até hoje fazem parte da minha vida e sempre estiveram do meu lado. Mas por algum motivo, todas estas recordações dela voltaram à tona agora.

Talvez seja algo como arrependimento, por ter desperdiçado aqueles momentos — e outros que poderiam ter vindo e que, certamente, seriam especiais também. Talvez seja o meu jeito de entender que eu errei em não ter me permitido viver tudo aquilo, de ter tido medo de arriscar. Ou talvez não seja nada disso, talvez seja só uma onda de saudade. Mas é difícil relembrar estes detalhes e assumir que essa história acabou agora. Agora e para sempre.

O cansaço foi me vencendo e eu fui lentamente fechando os olhos. O rosto dela foi a última imagem que eu vi antes de tudo escurecer por completo.

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Escrever é uma das minhas maiores paixões. Por aqui, eu falo um pouco das coisas que se passam pela minha cabeça, uma mistura de temas pessoais, reflexões sobre a vida e estórias fictícias. Sou gaúcha, moro em Toronto e trabalho como designer visual há mais de 15 anos. Mãe da Lica, a beagle mais linda desse mundo. Amante de música, livros, filmes, shows e tudo relacionado a Coréia do Sul. <3

4 Comments

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    O que eu posso dizer? Estou chorando aqui…

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    Fernanda:)
    É um texto destes que faz a gente pensar na vida…em tudo que deixou pra trás mas que gostaria de ter de volta,pelo menos mais uma vez antes de partirmos…

    Muito lindo *-*
    Beijos e cuide-se

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    A alguns minutos atrás, quando estava escrevendo no “Segunda Pop” ~nossa, a quanto tempo kkkkkkkkkk SOCORRO, NÃO ACREDITO QUE ESCREVI ESSA PIADA, CULPA DA AQUAFRESH KKKKKKKKKKK continuando, eu estava vendo a lista de desejo quando eu li pasta de couro, fiquei COMO ASSIM??? PASTA DE COURO?? ~ explicando, quando eu li fiquei pensando em pasta de DENTE (creme dental) ASKASJASAJSISAJIASJAIS AGORA FIQUEI IMAGINANDO SERÁ QUE EXISTE CREME DENTAL COM SABOR DE COURO??? AKOASJSASIJASADD

    Se sempre que eu leio esses textos, eu coloco uma música ~ opa…TRILHA SONORA para acompanhar, e se eu acho que fica tudo mais mágico assim kkkkk não é culpa da aquafresh, e sim sua, quem manda escrever bem #fim

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    Eu nem sei o que falar, tô besta! =/

    Passamos grande parte da nossa vida reclamando disso ou daquilo, das coisas que não deram certo, dos rolos amorosos que não prosseguiram… Simplesmente reclamamos de tudo! Eu ainda espero por um tempo em que deixarei de reclamar de tudo e começarei a aceitar as coisas como elas mesmas são. Isso não significa que não irei correr atrás dos meus objetivos, longe disso.

    Eu quero ser diferente desse cara do texto, sabe?! Quero ter boas lembranças e, acima de tudo, ter boas companhias ao meu lado, de preferência a companhia de alguém que me acompanhou a vida inteira fazendo sempre o bem…

    O teu texto, Fê, é mais daqueles reflexivos que nos deixa transtornado com tudo e todos! Perfeito!

    Bjs!

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